“É realmente necessário ter um tempo e um espaço para aprender?” Com esse questionamento, a atriz e produtora francesa Clara Bellar introduz a discussão sobre o movimento de desescolarização no documentário Ser e vir a ser (Vivendo e aprendendo). Gravado de forma independente na França, Alemanha, Inglaterra e nos Estados Unidos, o filme fez parte da seleção oficial do Festival do Rio, em outubro de 2014 e já teve 26 projeções no Brasil, todas organizadas e financiadas pelo próprio público, por meio do site oficial brasileiro. CRESCER assistiu a uma exibição realizada em janeiro no espaço Laboriosa 89, em São Paulo (SP).
Casada com um brasileiro e mãe de uma menina de 1 ano e de um menino de 6, cujos nomes prefere não revelar, Clara dividia seu tempo entre Rio de Janeiro (Brasil), Paris (França) e Los Angeles (EUA), desenvolvendo projetos, quando começou a pensar em como conciliar a escolarização de seu filho com a realidade nômade que vivia. “Não sabíamos que existia outra possibilidade além da escola, até conhecermos pessoas que faziam o ‘unschooling’ [desescolarização, em português] em Los Angeles. Não era nem a escola na escola, nem a escola em casa, e sim uma forma de aprender vivendo, no mundo”, conta Clara, em entrevista à CRESCER. Esse contato motivou uma busca pessoal por informações sobre o movimento, documentada ao longo de dois anos.
O filme mostra Clara junto do marido e do filho, conversando e convivendo com famílias que praticam o 'unschooling'. Eles também vão a grandes universidades, onde conversam com educadores e entrevistam especialistas no assunto. O público descobre com a cineasta como funciona essa maneira diferente de educar os filhos, baseada principalmente no aprendizado auto-motivado, ou seja, a própria criança sinaliza o que, quando e como quer aprender, a partir das experiências vividas no dia a dia com familiares, amigos e membros da comunidade. É possível ver histórias de crianças, jovens e adultos que tiveram uma educação livre e tornaram-se profissionais de sucesso. Alguns até partiram para a educação formal mais tarde e foram aceitos em grandes universidades de seus países.
Clara Bellar conversa com uma família de "desescolarizados" (Foto: Divulgação) |
Clara conta que tinha muitos questionamentos quando começou sua investigação. “No início, a gente não conseguia pensar fora da caixa. Meu marido dizia que nossos filhos não iam aprender nada fora da escola. Mas era óbvio que os jovens que conhecíamos iam muito bem, perseguiam suas paixões. Eles se ocupavam com diversos projetos e trabalhavam com muito interesse. Pensamos que seria interessante conhecer adultos que cresceram assim e pessoas que pesquisaram a questão e escreveram sobre isso. Seria uma boa maneira de responder às perguntas que eram minhas e de muita gente”.
Socialização
Uma de suas principais preocupações era a socialização. “Esse preconceito foi o primeiro a cair. Eu pensava: meus filhos vão ficar com quem? Descobri muito rápido que esse processo é bem mais rico fora da escola, porque as crianças fazem amizades com pessoas de diferentes faixas etárias. As famílias ajudam umas às outras e reinventam a comunidade”, diz Clara, que também se surpreendeu ao conhecer pessoas tão diferentes praticando a “desescolarização”. “Eu imaginava que havia um perfil definido, que todos seriam hippies ou professores. Mas vi que não. Percebi que o ponto em comum é, na realidade, uma certa coragem e uma liberdade intelectual que os adeptos desse conceito têm de confiar nos filhos, na vida e neles mesmos. Quem faz essa escolha pensa com sua própria cabeça”.
E o dinheiro?
Quando questionada sobre a barreira cultural e financeira, Clara afirma ter conhecido pessoas de diferentes níveis sócio-econômicos que aderiram à não escolarização. Para ela, a chave é a auto-confiança. “Alguns pais se sentem incapazes de guiar seus filhos e acham que precisam ser profissionais para educá-los. Mas depois percebem que eles não precisam ser ensinados. Seria muito arrogante dizer que o ‘unschooling’ é só para pessoas com mais cultura e dinheiro. Você não precisa ser rico para escutar seus filhos. Aliás, muitos têm dinheiro e não têm tempo de ficar com a família”, reflete.
Além da educação
Outra percepção que veio com o documentário foi a de que a “desescolarização” está ligada a uma visão de mundo e é acompanhada por outras decisões, que extrapolam a educação. “É uma escolha de vida global. Essas famílias têm reflexões sobre ecologia e prezam pelo respeito aos animais e ao planeta. Quando você aprende a pensar por si mesmo, não se torna um consumidor, então, essas crianças não acreditam que para alguém ser valorizado é preciso, por exemplo, ter um sapato novo. A confiança que elas têm não está relacionada ao que consomem”, explica.
Depois de avaliar tudo o que aprendeu enquanto fazia o filme, Clara fez a opção de não escolarizar os próprios filhos. “Não vejo isso como uma decisão. Pelo contrário: mandar as crianças para a escola agora seria uma escolha muito radical, porque eu estaria interrompendo um processo natural que está indo muito bem. Meu filho aprendeu a andar e a falar as três línguas da nossa família simplesmente vivendo e indo à luta.”
Cenário brasileiro
Durante a produção do documentário, Clara não conseguiu encontrar adeptos do movimento de “desescolarização” no Brasil, mas vários deles entraram em contato depois que o filme ficou pronto e começou a ser divulgado. “As pessoas me procuraram e disseram que estavam muito isoladas nessa escolha. Ainda é um tabu. Nas discussões que fiz no Rio de Janeiro, parecia que estavam falando sobre isso pela primeira vez. Foi muito intenso. Era como se estivessem saindo do escuro”, lembra.
O que dizem os especialistas
“Quando as pessoas se colocam contra a escola é por que têm
acesso e condições de oferecer para o seu filho situações de
aprendizagem mais ricas do que a escola pode dar. É complicado
pensar nisso como algo para todos. A regra é necessária para que
todo mundo tenha a mesma chance. Se a escola não está funcionando,
eu não posso dizer que a solução é a não-escola. A instituição muitas
vezes é uma organização necessária na nossa sociedade complexa.
Para estar fora dela, é preciso ter formação cultural, material disponível
e investimento.”
Gisela Wajskop, socióloga, especialista em educação infantil e
colunista da CRESCER.
“A ‘desescolarização’ é um dos caminhos futuros se pudermos contar
com pais com cultura geral e boa formação, que possam estimular
as crianças e suas competências e habilidades. Por enquanto, é um
mundo restrito, e a criança pode se sentir um peixe fora d’água se não
estiver na escola. Existe uma pressão cultural que impõe isso. A
sociedade elegeu a escola como a instituição própria para crianças,
então tirar uma criança de lá é tirá-la do lugar que a sociedade
escolheu para socializá-la.”
Maria Irene Maluf, psicopedagoga clínica e ex-presidente da
Associação Brasileira de Psicopedagogia
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