Palavra de Bebê quer melhorar a atenção à primeira infância nos abrigos municipais de São Paulo, capacitar educadores e preservar a história das crianças até o momento da adoção
Ao entrar na livraria, na zona oeste de São Paulo, Guilherme desceu do colo da mãe. Como toda criança feliz, saiu correndo por entre as estantes, desviando-se das pernas de adultos que encontrava pelo caminho. Parava de vez em quando para se certificar de que alguém estava prestando atenção na sua correria. Quem assistia à cena dificilmente imaginaria a história que o garoto, hoje com 2 anos, já tem para contar.
Guilherme passou o primeiro ano de sua vida em um abrigo para crianças. Sua mãe, sem condições de cuidar dele, o entregou logo após o nascimento. Com cerca de três meses, era um menino muito quieto. Quase não chorava ou dava trabalho para os educadores. Como não precisava de atenção, ficava sem receber. Porém, o que inicialmente era visto apenas como uma característica, passou a ser uma preocupação, já que ele parecia não estar se desenvolvendo no mesmo ritmo que outra bebê do abrigo, apenas dois meses mais velha.
As responsáveis por apontar que algo não ia bem com o pequeno foram as colaboradoras do Palavra de Bebê, um projeto que atua em quatro abrigos paulistanos para dar atenção especial a crianças de 0 a 3 anos, complementando o trabalho da equipe de educadores dos abrigos. As colaboradoras, percebendo que a atitude de Guilherme poderia significar um sofrimento silencioso, dividiram sua observação com os outros profissionais, que passaram a dedicar mais tempo àquele bebê. O carinho e contato mais próximo e presente fez com que, em poucas semanas, o garoto melhorasse sensivelmente seu comportamento, tornando-se mais sorridente e sem medo de pedir atenção.
Com pouco mais de 1 ano, Guilherme foi adotado. O casal Cristiane e Julio Bueno recebeu em casa essa versão mais espuleta do Gui, que hoje distribui beijos e, de quietinho, não tem mais nada.
Além de exemplo de sucesso das ações do Palavra de Bebê, Guilherme é uma das 23 crianças que tem sua trajetória contada no livro Esta é nossa história (R$ 50, Editora Alaúde), lançado no início de maio pelo Instituto Fazendo História, dentro do qual o projeto está inserido. Cada criança tem sua narrativa construída por pessoas que tiveram um papel importante em suas vidas. No caso dos bebês, os relatos foram feitos pelos colaboradores do projeto, por alguém da equipe do abrigo e pelos pais adotivos ou familiares mais próximos. Afinal, como já diz o nome do instituto, preservar a história de cada criança é seu objetivo principal.
Recordação para a vida toda
Um dos trabalhos mais importantes do Palavra de Bebê consiste em produzir um álbum para a criança no qual ficam registrados os momentos mais importantes que ela vive no abrigo. “Se não registrarmos o período durante o qual a criança está acolhida, aquilo vai se perder, como o primeiro passinho, a primeira papinha, a primeira palavra”, afirma Roberta Vigevani, coordenadora do projeto.
Mas não é só isso que cabe ali. Também há um esforço para contar a história que antecedeu a chegada do bebê ao abrigo, por mais dura que seja. “Acreditamos que ela é muito importante para entender as manifestações da criança e ajudá-la a dar sentido a algumas coisas”, explica Roberta. Claro que há diversas maneiras de contar essa história e é preciso levar em consideração que o leitor é uma criança. Por isso o álbum não é feito só de registros escritos, mas de fotos, desenhos e envelopes que preservam as passagens mais delicadas. Questões cotidianas, como o brinquedo que a criança mais gosta, os amigos com quem ela mais brinca e a posição em que ela costuma dormir, são igualmente registradas.
Os álbuns são confeccionados pelos voluntários do projeto em parceria com os educadores do abrigo. O envolvimento dos educadores é fundamental para fazer um registro mais apurado, já que são eles que convivem diariamente com os bebês, enquanto os voluntários fazem apenas uma visita por semana ao abrigo. Sem contar que esse compromisso de contar a história da criança fortalece o vínculo entre o cuidador e o bebê. “Muito mais do que um presente para a criança, o álbum é uma ferramenta de trabalho para o educador. Isso porque, quando você é convocado a fazer os registros de uma criança, inevitavelmente passa a ter um olhar mais singular sobre ela, percebê-la no dia a dia”, diz a coordenadora. E foi esse olhar que ajudou Guilherme a sair de seu casulo em seus primeiros meses de vida.
Não é uma tarefa fácil. Cada abrigo costuma atender 20 crianças com idades que variam de 0 a 17 anos, cada uma com uma demanda específica de sua idade e personalidade. “Elas [educadoras] têm que lidar não só com a questão da distância e o emocional, mas toda a consequência disso nas atitudes daquela criança”, afirma Fernanda Ferraz, que coordenou a produção do Esta é nossa história.
Se o dia a dia por si só já uma correria danada para a equipe que cuida desse grupo, ter um olhar especial para cada uma das crianças, enxergar além de suas necessidades básicas, requer esforço extra – e é para torná-lo mais natural que as colaboradoras do Palavra de Bebê trabalham. “Porque uma coisa é o bebê na família e outra coisa é um bebê em um lugar com todas essas demandas que o cuidador precisa dar conta. Quando a gente entra no projeto, entra como um modelo para os cuidadores, fazendo junto e incentivando”, conta Nívia Silva, uma das 15 voluntárias.
Quando as crianças são adotadas ou conseguem voltar para suas famílias biológicas, o álbum é entregue assim que elas saem do abrigo. Segundo as coordenadoras do Palavra de Bebê, os pais não se incomodam de levar o álbum para casa, que acaba sendo uma das poucas lembranças que elas guardam dessa fase, junto com um brinquedo, um paninho ou uma peça de roupa.
Gabriela Ciabotti é uma das mães que aceitou com muita alegria o álbum de seus filhos adotivos. Ela e o marido, Wladimir, adotaram há dois anos três crianças de uma só vez: as gemêos Tainá e Tauani e seu irmão mais novo, Lucas. O livro, que foi importante durante o processo de adaptação das crianças ao abrigo, também esteve presente no processo de adaptação à nova casa. “Os álbuns estão sempre acessíveis. Eu acho muito legal, inclusive porque há fotos da família biológica. Eu falo para eles ‘olha, vocês saíram da barriga dessa moça aqui’. Então falo o nome dela. Todo mundo tem a sua história mesmo e eu acho que tem que ser aberto, bem explicadinho”, conta Gabriela.
Primeira infância é coisa séria
O Palavra de Bebê surgiu como um desdobramento do projeto Fazendo História, que atende crianças dos abrigos. Roberta explica: “A gente entendeu que o acolhimento oferecido aos bebês tinha algumas particularidades, e seria importante ter um programa que se dedicasse especificamente à primeira infância.”
Para um bebê que vai para um abrigo, é preciso não só dar a ele as condições para se desenvolver durante uma fase crucial para sua constituição física e psíquica, como ajudá-lo a superar a separação da família. Por isso, além do trabalho realizado com os bebês, que inclui a confecção do álbum e uma oficina semanal organizada pelas colaboradoras dentro do abrigo, o Palavra de Bebê também capacita a equipe que trabalha no local.
A exigência de formação do educador atualmente é de ensino médio completo, apesar de o trabalho que eles desenvolvem diariamente ser muito complexo. Além deles, há uma equipe técnica, que conta com dois ou três profissionais formados na área de educação ou psicologia. Daí a importância da profissionalização, que inclui oficinas de formação dos educadores, reuniões para discussão de casos e acompanhamento técnico dentro do abrigo. “Ainda existe uma ideia de que cuidar de bebê não é tão importante, é só trocar fralda e dar comida, e todo o resto que está sendo construído ali acaba sendo jogado fora. Então um pouco do nosso trabalho é valorizar o educador, oferecendo ferramentas teóricas e práticas”, conta Roberta.
São esses educadores, afinal, que terão a responsabilidade de cuidar e educar aquele bebê em desenvolvimento por vários meses, às vezes anos. E um trabalho benfeito pode tornar a infância, e até mesmo uma vida inteira, muito mais feliz.
Ao entrar na livraria, na zona oeste de São Paulo, Guilherme desceu do colo da mãe. Como toda criança feliz, saiu correndo por entre as estantes, desviando-se das pernas de adultos que encontrava pelo caminho. Parava de vez em quando para se certificar de que alguém estava prestando atenção na sua correria. Quem assistia à cena dificilmente imaginaria a história que o garoto, hoje com 2 anos, já tem para contar.
Guilherme passou o primeiro ano de sua vida em um abrigo para crianças. Sua mãe, sem condições de cuidar dele, o entregou logo após o nascimento. Com cerca de três meses, era um menino muito quieto. Quase não chorava ou dava trabalho para os educadores. Como não precisava de atenção, ficava sem receber. Porém, o que inicialmente era visto apenas como uma característica, passou a ser uma preocupação, já que ele parecia não estar se desenvolvendo no mesmo ritmo que outra bebê do abrigo, apenas dois meses mais velha.
As responsáveis por apontar que algo não ia bem com o pequeno foram as colaboradoras do Palavra de Bebê, um projeto que atua em quatro abrigos paulistanos para dar atenção especial a crianças de 0 a 3 anos, complementando o trabalho da equipe de educadores dos abrigos. As colaboradoras, percebendo que a atitude de Guilherme poderia significar um sofrimento silencioso, dividiram sua observação com os outros profissionais, que passaram a dedicar mais tempo àquele bebê. O carinho e contato mais próximo e presente fez com que, em poucas semanas, o garoto melhorasse sensivelmente seu comportamento, tornando-se mais sorridente e sem medo de pedir atenção.
Com pouco mais de 1 ano, Guilherme foi adotado. O casal Cristiane e Julio Bueno recebeu em casa essa versão mais espuleta do Gui, que hoje distribui beijos e, de quietinho, não tem mais nada.
Além de exemplo de sucesso das ações do Palavra de Bebê, Guilherme é uma das 23 crianças que tem sua trajetória contada no livro Esta é nossa história (R$ 50, Editora Alaúde), lançado no início de maio pelo Instituto Fazendo História, dentro do qual o projeto está inserido. Cada criança tem sua narrativa construída por pessoas que tiveram um papel importante em suas vidas. No caso dos bebês, os relatos foram feitos pelos colaboradores do projeto, por alguém da equipe do abrigo e pelos pais adotivos ou familiares mais próximos. Afinal, como já diz o nome do instituto, preservar a história de cada criança é seu objetivo principal.
Recordação para a vida toda
Um dos trabalhos mais importantes do Palavra de Bebê consiste em produzir um álbum para a criança no qual ficam registrados os momentos mais importantes que ela vive no abrigo. “Se não registrarmos o período durante o qual a criança está acolhida, aquilo vai se perder, como o primeiro passinho, a primeira papinha, a primeira palavra”, afirma Roberta Vigevani, coordenadora do projeto.
Mas não é só isso que cabe ali. Também há um esforço para contar a história que antecedeu a chegada do bebê ao abrigo, por mais dura que seja. “Acreditamos que ela é muito importante para entender as manifestações da criança e ajudá-la a dar sentido a algumas coisas”, explica Roberta. Claro que há diversas maneiras de contar essa história e é preciso levar em consideração que o leitor é uma criança. Por isso o álbum não é feito só de registros escritos, mas de fotos, desenhos e envelopes que preservam as passagens mais delicadas. Questões cotidianas, como o brinquedo que a criança mais gosta, os amigos com quem ela mais brinca e a posição em que ela costuma dormir, são igualmente registradas.
Os álbuns são confeccionados pelos voluntários do projeto em parceria com os educadores do abrigo. O envolvimento dos educadores é fundamental para fazer um registro mais apurado, já que são eles que convivem diariamente com os bebês, enquanto os voluntários fazem apenas uma visita por semana ao abrigo. Sem contar que esse compromisso de contar a história da criança fortalece o vínculo entre o cuidador e o bebê. “Muito mais do que um presente para a criança, o álbum é uma ferramenta de trabalho para o educador. Isso porque, quando você é convocado a fazer os registros de uma criança, inevitavelmente passa a ter um olhar mais singular sobre ela, percebê-la no dia a dia”, diz a coordenadora. E foi esse olhar que ajudou Guilherme a sair de seu casulo em seus primeiros meses de vida.
Não é uma tarefa fácil. Cada abrigo costuma atender 20 crianças com idades que variam de 0 a 17 anos, cada uma com uma demanda específica de sua idade e personalidade. “Elas [educadoras] têm que lidar não só com a questão da distância e o emocional, mas toda a consequência disso nas atitudes daquela criança”, afirma Fernanda Ferraz, que coordenou a produção do Esta é nossa história.
Se o dia a dia por si só já uma correria danada para a equipe que cuida desse grupo, ter um olhar especial para cada uma das crianças, enxergar além de suas necessidades básicas, requer esforço extra – e é para torná-lo mais natural que as colaboradoras do Palavra de Bebê trabalham. “Porque uma coisa é o bebê na família e outra coisa é um bebê em um lugar com todas essas demandas que o cuidador precisa dar conta. Quando a gente entra no projeto, entra como um modelo para os cuidadores, fazendo junto e incentivando”, conta Nívia Silva, uma das 15 voluntárias.
Quando as crianças são adotadas ou conseguem voltar para suas famílias biológicas, o álbum é entregue assim que elas saem do abrigo. Segundo as coordenadoras do Palavra de Bebê, os pais não se incomodam de levar o álbum para casa, que acaba sendo uma das poucas lembranças que elas guardam dessa fase, junto com um brinquedo, um paninho ou uma peça de roupa.
Gabriela Ciabotti é uma das mães que aceitou com muita alegria o álbum de seus filhos adotivos. Ela e o marido, Wladimir, adotaram há dois anos três crianças de uma só vez: as gemêos Tainá e Tauani e seu irmão mais novo, Lucas. O livro, que foi importante durante o processo de adaptação das crianças ao abrigo, também esteve presente no processo de adaptação à nova casa. “Os álbuns estão sempre acessíveis. Eu acho muito legal, inclusive porque há fotos da família biológica. Eu falo para eles ‘olha, vocês saíram da barriga dessa moça aqui’. Então falo o nome dela. Todo mundo tem a sua história mesmo e eu acho que tem que ser aberto, bem explicadinho”, conta Gabriela.
Primeira infância é coisa séria
O Palavra de Bebê surgiu como um desdobramento do projeto Fazendo História, que atende crianças dos abrigos. Roberta explica: “A gente entendeu que o acolhimento oferecido aos bebês tinha algumas particularidades, e seria importante ter um programa que se dedicasse especificamente à primeira infância.”
Para um bebê que vai para um abrigo, é preciso não só dar a ele as condições para se desenvolver durante uma fase crucial para sua constituição física e psíquica, como ajudá-lo a superar a separação da família. Por isso, além do trabalho realizado com os bebês, que inclui a confecção do álbum e uma oficina semanal organizada pelas colaboradoras dentro do abrigo, o Palavra de Bebê também capacita a equipe que trabalha no local.
A exigência de formação do educador atualmente é de ensino médio completo, apesar de o trabalho que eles desenvolvem diariamente ser muito complexo. Além deles, há uma equipe técnica, que conta com dois ou três profissionais formados na área de educação ou psicologia. Daí a importância da profissionalização, que inclui oficinas de formação dos educadores, reuniões para discussão de casos e acompanhamento técnico dentro do abrigo. “Ainda existe uma ideia de que cuidar de bebê não é tão importante, é só trocar fralda e dar comida, e todo o resto que está sendo construído ali acaba sendo jogado fora. Então um pouco do nosso trabalho é valorizar o educador, oferecendo ferramentas teóricas e práticas”, conta Roberta.
São esses educadores, afinal, que terão a responsabilidade de cuidar e educar aquele bebê em desenvolvimento por vários meses, às vezes anos. E um trabalho benfeito pode tornar a infância, e até mesmo uma vida inteira, muito mais feliz.
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